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Recordações
(Cassiano Ribeiro Santos)

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EUFORIA NO ENTARDECER - Na pequena cidade de Contendas, na Serra do Sincorá, o cemitério ocupava a extremidade frontal de uma longa rua de terra vermelha e empoeirada. Nesta direção nenhuma montanha se avistava e os muros pitorescos do lugar ? cobertos de capim e arbustos que ninguém podavam ? confundiam-se com a linha do horizonte; justamente ali, por detrás das grades enferrujadas do portão, o sol se punha no verão e inundava de sangue os túmulos, as capelas em ruínas e as cruzes sobranceiras. No céu, um festim de magenta, sépia e lilases encenava um réquiem eufórico para o rei-sol que se deita. Esta visão contemplada pela janela da cadeia, imprimiu no espírito de Crispim a idéia da morte como um majestoso cerimonial, como arremate e corolário de uma vida perfeita. Acrescente-se a isso a leitura de um verbete ? em uma dessas duvidosas enciclopédias das bibliotecas do interior - sobre o funeral dos Vikings. Quando morria, o guerreiro era depositado no seu barco, coberto de lenha e palha e lançado ao mar no entardecer. Da areia, na praia, seus companheiros acendiam as flechas em piras funerárias e as atiravam no barco a vencer as ondas. O barco se incendiava sobre as águas imitando o sol que ardia no horizonte. Quando o poente e as labaredas encenavam cores de um mesmo matiz, acreditavam eles, surgia uma ponte de luz por onde cruzavam as Valquírias, a conduzir em seus lampejos a alma do viking para o Vahalla, cujos portões eram abertos pelo sol que se deita. Com esse mito nórdico na cabeça, Crispim viveu, se esforçando e perseverando para chegar a esse glorioso dia em que morreria inchado e vermelho como o astro-rei. Diz a lenda que ele morreu de febre hemorrágica, sudorando nas paredes da prisão os reflexos do seu místico sangue, suspirando jubiloso e satisfeito:
_Perfeito, fim de uma jornada! Tudo nos conformes e nos eixos! Soltem o bando de andorinhas! Entoem Aves-maria e um TE DEUM! Estou descendo para outra vida, mas dessa nada posso dizer. É segredo!


IDEALISMO E DESILUSÃO
Conheci um ex-monge budista nos meus anos de alfândega no porto de Salvador. Era ele então um contramestre, um velho marinheiro chinês desertor do mosteiro. Minha função era passar a noite a bordo do navio mercante onde ele trabalhava e onde havia fortes suspeitas de contrabando. Sobre o mar ondulante a lua apascentava milhões de reflexos dourados. Meu crônico mal de amor, contudo, impedia-me a contemplação de tão doce espetáculo pois, na intermitência das ondas, emergia das águas o rosto gigante da minha amada e esta alucinação convidava-me a um mergulho sem redenção. Sentei-me então ao lado do velho marinheiro. Com a cumplicidade que existe entre homens desafortunados aceitei um trago do seu cachimbo sem que uma palavra fosse trocada. Em breve ele contaria-me cenas da sua infância nas montanhas Wu-Mei, no vale conhecido como ?Estrada de Seda?. Li Ping, seu nome, trabalhava quando criança nos bosques guiando viajantes por atalhos velozes e desconhecidos dos assaltantes. Ele e dois outros meninos moravam com o monge Zao Zao no templo do dragão de jade. Zao Zao zelava pelo fogo sagrado que ardia na pira no centro do pátio. Ali o garoto acendia a sua tocha e descia entre o bambuzal até a estrada à espera de algum viajante assustado. Muitas vezes durante a noite a tocha se apagava e Li Ping voltava desolado até o templo guiado somente pelas estrelas longínquas sobre o bambuzal. Acendia outra vez a tocha e corria temendo pelo viajante abandonado, arriscando mais ainda o fogo que o iluminava. Zao Zao não era indiferente a todo esse transtorno e um dia chamou o futuro marinheiro aos aposentos do templo. Havia pensado muito naquele caso e havia inventado para Li Ping um artifício inspirado pelos deuses do fogo. Com esse pequeno artifício dentro da bolsa Li ping estaria seguro de nunca lhe faltar a chama que o guiava no bosque de caminhos bifurcados. Com emoção na voz e nos olhos o marinheiro disse-me ter ainda consigo o presente do seu mestre. Por detrás da sua retina parecia bailar as cenas da infância como os reflexos da lua sobre a água. Tive então uma iluminação e comentei-lhe no espanhol rudimentar que comungávamos:

-
Entendi tudo, meu amigo! O fogo sagrado era na verdade os ensinamentos do seu mestre e você guiava os homens perdidos na estrada da vida transmitindo-lhes as palavras inflamadas daquele sábio. Às vezes, porém, esquecia algum detalhe e voltava ao mestre - a chama ainda não ateada nas verdes achas da sua alma. O artifício por ele inventado certamente fora um livro, um pequeno manual com as sentenças preclaras a iluminar os paladinos da verdade!

Eu também estava inflamado. Conteve-me a expressão esquisita no rosto do velho marinheiro. Parecia não ter ouvido-me e fitava o cais com olhos perdidos em terras antigas e distantes que são as formas enfáticas do tempo e do espaço. Suas mãos abriram um embrulho retirado do bolso no casaco. Dentro dele havia uma pequena caixa de fósforos que ainda guardava, quem sabe, o calor das mãos que a talhara!

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